Maresia da memória – Bablinga

por Diego Silva Souza
Esse texto foi originalmente publicado no CineFestivais
Memórias, assim como ondas do mar, não podem ser contidas. Elas possuem seus próprios fluxos, ora intimidantes, ora sedutores. Por mais que você as ignore, continuam fluindo, como se esperassem o momento em que irão emergir. A construção fílmica de Bablinga reproduz essa natureza volúvel das lembranças: o vai e vem, a desorientação, o fugaz…
Quando somos apresentados a Moktar pela primeira vez, o vemos de costas, fitando de uma distância segura as ondas de um agitado oceano. O voice over que acompanha a cena não é situado, dando indícios da suspensão do tempo-espaço que sucede o restante do filme. Mais adiante, a distância entre o burquinense e a água vai se encurtando, até ela tocar seus tornozelos cobertos pela calça. Um corte, e Moktar já não está no mar. É teleportado para as memórias da juventude em Burkina Faso, não exatamente em um flashback, mas como um observador externo. A imagem, antes puxada para o azul do frio francês, agora destaca o amarelo tropical de Faso.
Pouco a pouco, Moktar se deixa afundar. Se antes figurava como um observador, agora passa a interagir com aqueles fantasmas como se o tempo nunca houvesse passado. A iluminação amarela dá lugar às luzes de discoteca, a música sobe o tom e os corpos se entregam à dança. Quando a catarse se encerra, um celular irrompe a cena pelas mãos de Moktar. O amigo do outro lado da linha está bem à sua frente, mas a voz que o responde não pertence ao corpo que ele vê naquele não-lugar. Outra vez, o filme evidencia essa suspensão do tempo-espaço que segue se intensificando.
O cenário de repente desaparece, dando lugar a um fundo preto. Como em uma memória muito antiga, vemos fragmentos (rostos, pescoços, cabeças) que se fundem à imagem de mar que, dessa vez, move-se serenamente. O rosto de Moktar é o último a aparecer nessa fusão de imagens e ele sorri enquanto mimetiza a maresia.
Voltamos no tempo para o momento da decisão da partida para a França. Caminhando sobre a areia, os fantasmas desaparecem em direção ao mar. Novamente, Moktar está na praia fitando o oceano. Dessa vez, o vemos de frente para a câmera, em um plano geral que permite ver ao fundo o bar recém-fechado na França. Ele não mais veste o terno preto do início do filme, mas um terno claro, o mesmo do momento de seu êxodo de Burkina Faso. Talvez então não se trate do bar recém-fechado, mas do recém-aberto?
Passado, presente e futuro se misturam em Bablinga tal qual forma e conteúdo, em uma construção fragmentada e não linear que perpassa todo o filme, na montagem desses flashs de imagens ou nos delírios de Moktar. Um emaranhado que resulta num labirinto que, a cada olhar lançado sobre ele, parece afastar mais a possibilidade de uma resposta.
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Diego Silva Souza Ver tudo
Diego Silva Souza é nascido e criado em Timóteo, no interior de Minas Gerais, e atua escrevendo sobre audiovisual em artigos e textos críticos. Graduando de Jornalismo na UFMG, fez parte do Júri Jovem da 23ª Mostra de Tiradentes, integrou a comissão julgadora da 2ª Mostra de Curtas Cinecubo e a curadoria do 9° Cinecipó – Festival do Filme Insurgente. Possui colaborações com a Zagaia em Revista, Cinética e Cine Festivais, além de comentar filmes na Mostra Cinema Permanente do Cine Humberto Mauro.