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Lixo-alucinógeno-radical? – Rodson ou (onde o sol não tem dó) (2020)

24ª Mostra de Cinema de Tiradentes

Mostra Olhos Livres

Estrelas de outros mundos anunciam os créditos em vermelho sangue de Rodson ou (onde o sol não tem dó), dirigido pelo trio Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra, que depois dão lugar a uma fotografia estourada de uma câmera ruim e tonta. Um cenário destroçado, vibrante e instável materializa o começo do caos. Uma família encena a primeira batalha do filme, com suas roupas-fantasias, seus figurinos improvisados com restos reaproveitados. As personagens encenam forte, exagerado. Elas marcam: isso é uma encenação. 

Um casal briga e repete papeis de gênero: a dona de casa histérica; o machão bravo. Rodson é o filho oprimido.

No começo, a morbidade dessa cena e do universo ficcional criado parecem uma brincadeira de mau gosto de crianças que copiam a violência do mundo. Os pais têm a mesma idade do filho, uma criança-adulta perturbada. Um pesadelo epilético/apocalíptico. Tal como num jogo entre crianças que se propõem a brincar de faz de conta sem descumprir as regras do mundo fantasia, os limites do terror e da provocação são colocados à prova. Não tem saída, o negócio é continuar na bad trip. 

Caleb, um robozinho de alumínio, conforta Rodson de seus pais abusivos e sádicos. Caleb vem do lixo. Ele é encontrado por Rodson entre restos de queimada – o prata futurista em meio às cinzas do passado. É amor à primeira vista. É também Caleb quem anuncia o motivo do filme: 

“Pega na minha mão e te levarei pelas estradas do universo. Vou te proporcionar novas experiências sensoriais e novas configurações espaciais. Me aceite e serei o seu violento instinto artístico criativo. Libertador auto preservativo inconsequente jato de lava primata. O sintoma do universo está escrito em seus olhos.” 

Essas palavras, como o anúncio de um videogame, dão a segunda largada à narrativa: será que o público quer continuar nessa jornada? O prazer não é garantido. A tontura é um risco. 

A ideia de jogo não está apenas no discurso e na encenação – está também na forma como o filme escolhe se aventurar, por estradas infinitas que passeiam entre as bordas da tela, junto de vilões, conflitos e epifanias. E, assim como os jogos eletrônicos de rolagem lateral (os side-scrolling video games) que algumas cenas simulam, Rodson caminha entre a direita e a esquerda, num caminho infinito sem horizonte. Nós, reféns da zombaria e do chorume que emana da tela, acompanhamos a viagem caleidoscópica sem um destino determinado. O rolê é seguir de forma instintiva, experimentando as inúmeras texturas que distorcem a imagem realista.

Dilemas morais, esquemáticos e patéticos do mundo “real”, como a hipocrisia de uma tradicional família católica e a mania de conspiração comunista, invadem a ficção e são ridicularizados a ponto de quase não serem reconhecidas na narrativa. Qualquer fio de conteúdo é tênue demais para realmente nos agarrarmos a alguma crítica direta que a obra queira fazer. Nesse sentido, Rodson está entre a pretensão e o desapego, ou entre os excrementos e a alta tecnologia, ou ainda a experimentação e o descaso. É escatologia misturada com pornô futurista. O ponto é que tem algo indeciso nesse filme, agente do caos. 

Há, simultaneamente, uma vontade narrativa de investir numa história e um desejo de jogar tudo para o ar, explodir o cinema. A jornada do herói está toda ali: o garoto injustiçado que sofria muito no seu mundinho fechado e decide tomar uma decisão radical – sair de casa sem rumo –, passando por inúmeros obstáculos, tentações e descobertas, até encontrar seu caminho de paz. Rodson é o Ulisses da distopia cyborgue. A narrativa, no entanto, se serve das possibilidades infinitas da experimentação digital para jogar com seu herói e o destino fatal do futuro. É câmera na mão com estética new wave escrita em comic sans e outdoors publicitários jogados no lixo. É jogo 2D nos anos 3000. 

Rodson quer ser a tela azul. O pane no sistema que nega a própria existência do sistema: tudo é lixo alucinógeno. Porque, no final das contas, quando o cinema-jogo se junta com o cinema mudo freak, o mundo neon techneiro e as bandas de garagem, tudo escorrega num terreno incerto de euforia. Alucinamos juntas ou damos um passo para trás, para tentar tocar os signos-miragem?

Tem um momento do filme que parece resumir a minha geração, que é também a geração das cineastas, que é também a geração do meme e do fim do mundo. Rodson toma um doce e percebe que a violência não é a solução para enfrentar o sistema, e sim um sinal de fraqueza. Ele começa a protestar pacificamente pela paz mundial. Depois, ele percebe que a passividade não leva a nada e começa a protestar violentamente pela paz. Então, Rodson decide que quer quebrar o sistema por dentro e tenta se candidatar à presidência da república. Ele perde e fica destruído depois do seu fracasso político. Resultado: Rodson perde a fé na paz mundial e entra na “perdição”. 

Esse desequilíbrio político de Rodson poderia ser um meme ou um tik tok viral. Tem algo nisso que conversa com a gente, hoje, nesse Brasil caótico, pandêmico e virtual. Mas tem alguma diferença entre experienciar o filme e sair de uma longa treta do twitter? Deveria ter alguma diferença? Existe radicalidade no deboche? Ou, eventualmente, ele cai em suas próprias armadilhas? 

São algumas questões que ultrapassam o próprio filme, mas que também o atravessam. Porque tem algo do deboche que dissimula para sua própria proteção. Ele coloca uma armadura, vestida de trash, que se blinda de um contato direto. Nisso, tudo é mediado pela alucinação. Experimentamos, tudo junto e misturado, estéticas futuristas, modernas e clássicas; problematizações, zueiras, memes, imagens editadas, reeditadas, reinterpretadas e jogadas no liquidificador. A gororoba resultante disso corre o risco constante de estetizar questões muito complexas que o filme só consegue raspar de fininho, lacrando na edição. Tem uma radicalidade importante nisso, sim, porque é cinema que nega qualquer definição. Só não sei até onde ela consegue nos tocar. Porque nesse liquidifcador onde todo deboche é válido, onde nada é absurdo demais, não existe verdade. É tudo muito escorregadio para se agarrar a qualquer personagem, a qualquer sentimento, a qualquer crença, a qualquer textura. 

Pode ser que o Brasil seja o Brasil de Rodson. Um Brasil que não merece ser levado a sério. Mas será que, assim, o filme e toda sua proposta radical não se esvai de tal maneira que a tela poderia estar piscando para olho nenhum, no escuro, que não faria diferença alguma? 

lamiramuniz Ver tudo

Larissa Muniz atua nas áreas de pesquisa, montagem, realização, fotografia e crítica/curadoria. Integra o grupo "Poéticas Femininas, Políticas Feministas'', da UFMG, e tem se dedicado a estudar modos de realização feminista no cinema e nas artes visuais.
Dirigiu os filmes “ela viu aranhas” e “eu vi nos seus olhos, da janela, eu vi, que era o fim”.

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