Ir para conteúdo

Sobre os tropeços e o desequilíbrio – Kevin (2021)

24ª Mostra de Cinema de Tiradentes

Mostra Aurora

por Iakima Delamare e Larissa Muniz

Quando Kevin busca Joana no aeroporto de Uganda, ao se depararem com o carro de uma ONG, Joana a questiona sobre a quantidade de Organizações Não Governamentais no país. Kevin responde que “existem mais ONGs do que causas”. Apesar de soar como o início de uma discussão interessante, é um dos poucos comentários diretamente sócio-políticos do filme, sendo que esse tom é suavemente diluído nas micropolíticas ao longo da narrativa, envolvendo principalmente as diferenças na forma como as duas mulheres experienciam o mundo. Afinal, por mais que esses atravessamentos não possam ser negados, Kevin, de Joana Oliveira (2021) propõe-se a ser um filme sobre o afeto entre duas amigas de décadas.

Kevin parece se construir como um acontecimento cinematográfico, que envolve tanto planejamento quanto espontaneidade, numa dinâmica cujo objetivo principal é filmar, a uma distância segura, a relação entre duas mulheres. É um cinema proposto para manter uma amizade de anos, para fazer uma carta de amor à uma amiga querida. O filme existe em função dessa relação, e não o contrário.  Nessa tentativa de filmar um amor puro entre duas mulheres muito diferentes – uma ugandense, outra brasileira – Kevin é também um ensaio da alteridade. O afeto é possível.

Por meio da atualização dessa relação de anos no presente do filme, aos poucos as duas amigas se permitem afundar nas memórias e nas vidas uma da outra. Elas revisitam fotos e arquivos antigos (de Joana e Kevin jovens no intercâmbio onde se conheceram, do casamento de Joana, da família de Kevin), memórias de noites em claro, histórias de ambas em relação à maternidade ou à ausência dela.  “Entre meus filhos e meus pais, em algum lugar no meio eu consigo ser eu mesma” diz Kevin quando Joana afirma que a vê fumando escondido às vezes, numa certa cumplicidade juvenil. Nesses desabafos íntimos, há quase um jogo de adultas que tentam se reconhecer nas jovens que um dia foram, e entre risadas e silêncios confortáveis, o vínculo entre as amigas se fortalece – às vezes em frente às câmeras, às vezes num extracampo que não acessamos.

O calor do encontro entre Kevin e Joana cria uma dinâmica natural e desajeitada ao mesmo tempo. É aquele cuidado de uma amizade que há tempos não se encontra, mas cujo carinho continua tão presente quanto os momentos mais intensos de convivência. A sensibilidade da câmera, quieta e discreta em seus planos majoritariamente fixos, permite fluir a intimidade que aos poucos cresce em cena. Ela não é imediata. Parece que as duas mulheres, as duas atrizes, precisam de um tempo em frente à imagem que virá a ser para conseguirem se entregar. 


Passada mais da metade da projeção, sentadas num banco de praça, Joana e Kevin, unidas em um mesmo plano frontal, conversam sobre a maternidade e os efeitos da gravidez no corpo de Kevin. Em meio à conversa, Joana parece incomodada. Após uma breve hesitação, ela acaba compartilhando que também sentiu os mesmos efeitos em seu corpo, mesmo que sua gravidez tenha durado apenas três meses. Talvez seja uma das conversas mais íntimas e compartilhadas das duas, na qual há um ponto importante de convergência – o corpo feminino. Há uma vulnerabilidade implicada nessa dinâmica de intimidade do filme que exige muita coragem, especialmente em relação a Joana, que se elabora enquanto uma personagem frágil, ficcionalizando/documentando suas próprias experiências de dor e esperança. Existe aqui uma intenção de misturar escrita de si junto da escrita da outra, Kevin, amiga íntima que ela também espera retratar. É também aí que o desbalanço do filme começa. 

Aos poucos, percebemos que a jornada de Kevin é a jornada de Joana, a protagonista, e que talvez essa relação aparentemente simples e natural entre as duas, aos olhares alheios, é muito mais complexa do que o filme se permite explorar. Porque, afinal de contas, Kevin quer ser um filme de amizade, mas ao mesmo tempo é atravessado por questões políticas e sociais que não se desviam desses corpos em cena. Nesse caso, a redoma segura criada pelo amor entre essas duas mulheres não basta. Parece necessário furar a bolha e olhar para fora. 

Afinal, “O que é ser Kevin no mundo?” perguntou a crítica Mariana Queen no debate da Mostra de Tiradentes sobre o filme. “Quem cuida de Kevin?”, completou. É uma questão chave porque, ainda que as diferenças entre as duas personagens se diluam no afeto, em momentos em que a raça, a nacionalidade e a cultura não precisem ser colocadas no quadro, a jornada principal ainda é branca. O filme parece querer esquecer que o afeto também é dolorosamente atravessado por questões reais, e que é um fato o estereótipo histórico e recorrente da mulher negra que cuida da mulher branca, enquanto a primeira precisa ser forte e lidar de frente com as questões. A outra pode se recolher e ser frágil. Não seria a própria viagem de Joana um exemplo disso? Ela passa por um período difícil e pode viajar (e filmar) para se refugiar no colo da amiga. Kevin, por outro lado, cria três crianças sozinha e precisa lidar com todas as dificuldades que suas escolhas de vida implicam num país como Uganda, enquanto nunca conseguiu ir ao Brasil. 

É inegável que há uma troca genuína entre essas mulheres. Elas se fortalecem. Há uma cena na qual as duas caminham por trilhos vazios, tentando se equilibrar sozinhas enquanto conversam. O balanço é difícil, vez ou outra uma tropeça. Kevin conta que fechou seu salão de beleza e Joana calmamente a apoia, insistindo para ela não desistir. Finalmente, elas se dão as mãos e se equilibram uma na outra, como amigas de infância que fazem do caminhar juntas uma brincadeira. Kevin destaca que, quando elas se apoiam, o equilíbrio fica mais fácil. Nessa dinâmica de troca, há uma honestidade e um carinho cuidadoso no modo como elas dividem suas experiências uma com a outra. No entanto, é difícil deixar de pensar sobre as decisões narrativas que pesam esse pretenso “equilíbrio” para o arco de superação de Joana, esquecendo Kevin enquanto uma personagem própria, que aos poucos vai se tornando quase uma guia espiritual da amiga em busca de sua cura.

E se Kevin fosse apenas sobre um período difícil da vida de Joana, o cenário seria outro. Mas ao final, quando Joana deixa de ir ao rafting porque percebe que, de novo, pessoas brancas se divertem enquanto pessoas negras trabalham, o quadro todo se bagunça. O filme deixa de ser um encontro de afeto, ou uma jornada de cura pessoal, para se confrontar com questões raciais cujo dispositivo do filme não consegue lidar. De repente, Kevin em primeiro plano explica a Joana porque ela não deve deixar de fazer o rafting em função do racismo, porque não é isso que vai mudar as coisas. 

Ao invés de um confronto, que teria sido importante num filme sobre o carinho entre duas mulheres de contextos culturais e raciais tão diferentes¹, a única cena explicitamente racial apazigua o desconforto. O diálogo todo soa mais como uma expurgação, porque Joana coloca seu incômodo na narrativa como uma espécie de culpa branca que precisa ouvir palavras de consolo. Kevin se recusa, sim, a oferecer essa redenção mas, ao mesmo tempo, devido à intimidade entre elas, tem algo em sua suavidade que não foge do conforto. E a quem interessa essa proteção? 

Essas escolhas narrativas são consolidadas na última cena do filme, na qual Kevin corta os cabelos da amiga, marcando a mudança de Joana e a estagnação de Kevin. Esse final completa uma série de escolhas de uma obra que, seja por desinteresse, seja por insuficiência, parece ter se afastado de sua premissa principal. A cumplicidade das duas, ponto mais interessante e caloroso do filme, é sugada pela própria indefinição do que Kevin quer ser. Talvez a necessidade de um arco narrativo completo tenha confundido o propósito do encontro, do filme que só quer existir para permitir a visita de Joana à sua amiga de anos, para aproximar Uganda e Brasil por meio de um laço tão íntimo. O filme-saudade, que implica na vulnerabilidade e no encontro, acaba se transformando num filme de superação, cuja carga é pesada demais para Kevin abraçar.

¹  Como lembra Lorenna Rocha em seu texto “Afinal…Kevin?”, um filme que passa por um processo parecido é Teko Haxi, no qual Sophia Pinheiro, uma das realizadoras, vira a câmera para si mesma para questionar, diante de Patrícia, uma mulher indígena que a guiava por seu mundo para o documentário, e questiona a sua posição ali, como mulher branca, antropóloga. Em meio às lágrimas, Sophia nos entrega um monólogo sincero das dúvidas em torno de uma jovem cineasta branca, seus privilégios e os significados das dores que enfrentava ali. Em resposta, vemos Patrícia, que se nega a consolar a amiga, ou mesmo isentá-la de qualquer culpa branca. 

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

%d blogueiros gostam disto: