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Mais do que um musical quilombola – A Sússia (2018)

6ª Mostra de Cinema Feminista

Certo perigo ronda as discussões sobre representação e representatividade quando tratamos do cinema realizado por pessoas negras, indígenas ou de corpos dissidentes. Perigo presente tanto na concepção desses trabalhos, pelo risco de diretores e diretoras firmarem todas as suas ideias e propostas numa concepção limitada de lugar de fala, quanto no modo como esses filmes são recebidos. Por exemplo, é sedutora a ideia de classificar filmes nas caixinhas de cinema negro, cinema feminista, cinema indígena, entre outras, já que é fácil ler um filme a partir de ideias pré-concebidas. Ou elas existem na cabeça de cada interlocutor, e assim demarcam limites para a interpretação, ou não, e a obra é descartada de início. – Ah, isso não foi feito pra mim, então tanto faz.

A Sússia (2018), filme de Lucrécia Dias a ser exibido na VI Mostra de Cinema Feminista a partir do dia 26 de agosto, flerta com esse perigo. Em diversos momentos do curta, a diretora demarca o lugar de onde filma: uma mulher negra e quilombola registrando sua própria comunidade. Essa demarcação existe no ato de dedicar o filme à mãe, e adicionar uma imagem de arquivo dela dançando; no momento em que os moradores da Comunidade Quilombola Lagoa da Pedra ressaltam a diferença entre o enquadramento da diretora, que veio dali, e daqueles outrora feitos por pesquisadores de fora; quando, numa conversa entre Lucrécia e sua amiga, elas ressaltam o quanto possivelmente se afastaram da comunidade e o quanto essa reaproximação faz bem.

Mas aí está a principal diferença: Lucrécia se insere no filme, filma e se permite filmar, entretanto elabora uma narrativa que não se fecha em si e na comunidade, mas que se abre em tela. Uma dica desse método já é dada no início do filme. Lucrécia é enquadrada de costas, com uma prancheta na mão, enquanto abre a porteira da comunidade, como que nos convidando a entrar junto com ela. “Ô de casa”, ela diz, deixa pronta para a construção de um filme de encontros, rememorações e atualização da cultura.

Ao fazer isso, o curta destrava todas as possíveis armadilhas de seus espectadores, e comunica diretamente também com aqueles que, por não compartilharem da experiência da diretora, poderiam não se deixar afetar. E ela o faz utilizando artifícios, inclusive, de um gênero especialista em brincar com os limites do cinema: o musical. Em cada canto, em cada batida de pé, em cada risada após um passo em falso, estamos lá, conduzidos pela sússia, reconhecendo-na em outras manifestações culturais, adentrando aquela roda como se estivéssemos em casa.

Pois, mesmo que a demarcação do lugar de fala soe excessiva em alguns momentos, é essa experiência que possibilita um registro tão sincero e tão cheio de afeto.

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