Elas e as imagens que retornam: cena e levante em Hoy y no mañana, de Josefina Morandé (Chile, 2018)
6ª Mostra de Cinema Feminista
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“Em alguns momentos tenho a impressão de que já vivi isto
e que já escrevi estas mesmas palavras, mas compreendo
que não sou eu, mas outra mulher, que anotou em
seus cadernos para que eu delas me servisse.”
– A casa dos espíritos, Isabel Allende

Medo, golpe, genocida, ditadura, censura. Incêndio, memória, perda, morte.
Levante, manifestação, greve, coletividade. E feminismo, de alguma forma o feminismo.
Hoy y no mañana, filme de Josefina Morandé (Chile, 2018), me levam à essa coleção de palavras que puxam uma à outra, trazendo lembranças similares ao passado e presente brasileiros. O documentário faz uma retrospectiva atualizada do movimento Mujeres por la vida, fundado em 1983 no Chile como forma de resistência à ditadura de Pinochet. Morandé entrevista algumas das fundadoras do coletivo (sobreviventes militantes, incluindo artistas, donas de casa, pensadoras etc), hoje já idosas, que rememoram as revoluções desse passado recente. A diretora recupera cenas performáticas e estratégias de manifestação realizadas pelo coletivo, com alguns nomes importantes da luta pela democracia no Chile, como Mónica Echeverría, Fanny Pollarolo, Teresa Valdés, María Olivia Monckeberg, Mirentxu Busto, Estela Ortiz, Lotty Rosenfeld e Kena Lorenzini.
Apesar da diretora e das entrevistadas se desviarem de alguns conflitos e contradições inerentes a qualquer movimento político (nesse caso, acusações de elitismo, falta de mulheres racializadas, divergência de partidos políticos, ou o fato de nem todas as mulheres do grupo se considerarem feministas), o longa carrega uma força grande de traçar a presença das mulheres na resistência chilena – que é constantemente jogada às margens da história.
Algumas entrevistadas falam de afeto; outras de ativismo. Algumas parecem vir de um histórico de maior fôlego na luta; outras parecem desconhecer toda a rede de opressões que estava em jogo. Um ponto une todos os depoimentos e manifestações: a performance, a composição da cena, o desejo de destruir o palco do ditador. Essa parte essencial de qualquer movimento político que, afinal, quer desequilibrar o poder e colocar o corpo em jogo, num impacto coletivo que desestabiliza os símbolos da opressão.
Pensando nesses corpos que se colocam no mundo, na iminência de alguma tragédia, diante do perigo da morte, quero destacar uma sequência específica que me parece expressar esse clamor de gritar “Hoje e não amanhã”.
Estela Ortiz, uma das entrevistadas do filme, chora a morte do marido depois do Caso Degollados (uma série de assassinatos de opositores do governo que ocorreu em 1985) e a prisão do pai. A câmera filma Estela de perfil, cercada por fragmentos de outras pessoas que escutam seus gritos. A câmera tenta enxergá-la mais, entrar no monte de pessoas, mas consegue pegar apenas parte da cena. Não é possível filmá-la de frente. Sua voz é instável diante dos gritos que precisam sair, clamando uma união de mulheres, trabalhadores, compatriotas, para acabar com o sofrimento do povo chileno. Depois do seu discurso, como se tomada pela exaustão, Estela parece perder toda sua força física. Mãos de mulheres tocam sua face, tentando acalmá-la e apoiá-la, oferecendo algum alento em meio ao caos. Sua face, a expressão do desfalecer: uma força que se desmancha depois de derramar seu abismo.
Essa sequência de Estela carrega um páthos pertencente à uma certa iconografia de levantes do terceiro mundo, que afeta intensamente quem assiste. É impossível permanecer indiferente diante do choro profundo. São imagens que, de alguma forma, carregam a energia de um NO+, de um corpo que reúne toda a força que tem para gritar mais uma vez, assim como Estela o fez, para resistir na cena esperando, quem sabe, que ela uma dia consiga rachar para fora do enquadramento – e que o sofrimento expurgado não retorne jamais.
Hoy y no mañana, por meio dessa coleção de imagens de arquivo que gritam a desobediência, recupera uma câmera que, no passado, operou como uma guardiã das cenas de levante que devem persistir no mundo, num momento histórico específico que ainda reverbera fortemente hoje. O filme guarda a memória dessas cenas, trazendo-as para o presente, para nós, espectadoras, e para as próprias ativistas que reassistem às suas imagens de luta. A montagem revive (outra) história: a das mulheres chilenas e suas tentativas de revolução que passam pelo coletivo, pelo corpo e, o mais importante, pela absoluta recusa.
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lamiramuniz Ver tudo
Larissa Muniz atua nas áreas de pesquisa, montagem, realização, fotografia e crítica/curadoria. Integra o grupo "Poéticas Femininas, Políticas Feministas'', da UFMG, e tem se dedicado a estudar modos de realização feminista no cinema e nas artes visuais.
Dirigiu os filmes “ela viu aranhas” e “eu vi nos seus olhos, da janela, eu vi, que era o fim”.