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És um senhor tão bonito, quanto a cara do meu filho – Colhia o tempo que nem laranja no pé (2020)

6ª Mostra de Cinema Feminista

“É preciso dançar e cantar para suspender o céu, para que as mudanças referentes à saúde da Terra e de todos os seres aconteçam nessa passagem”, escreve Ailton Krenak em Ideias para adiar o fim do mundo. Longe de uma visão funcional das atividades humanas, que prevê intensos modos de organização e um completo aproveitamento do tempo disponível, Krenak pede uma pausa na narrativa para a formulação criativa de outras formas de existência, cujos preceitos também sejam outros. 

De certa forma, é isso que Layla Braz nos oferece. Uma espécie de suspensão pode ser observada em Colhia o tempo que nem laranja no pé (2020), curta exibido na 6ª Mostra de Cinema Feminista, promovida pela Coletiva Malva. Ao registrar o cotidiano de uma família de forma despretensiosa, Layla cria um campo onde outras noções de tempo, afeto e intimidade podem ser suscitadas, buscando diferentes experiências que não aquelas guiadas por uma funcionalidade que seja absoluta. 

A dica já está no começo do filme, quando a diretora filma o trajeto de seu deslocamento rumo a este cotidiano, momento representado pela breve viagem de ônibus, e apresenta as mensagens de áudio que foram encaminhadas pelos parentes. Há, ali, um jogo entre o que é familiar e o que se coloca enquanto singular. Seja por meio das imagens que são vistas pela janela, que apresentam uma região metropolitana cujo horizonte poderia terminar tanto na Serra do Curral quanto na Serra do Rola-Moça, seja por meio dos áudios que são tocados, que repercutem lembranças e experiências que podem ser rememoradas por qualquer um que esteja assistindo ao curta – consideremos, por exemplo, as várias repetições da querida expressão “Fica com Deus, beijo” como um signo que reforça o afeto que enlaça aqueles personagens e a coletividade que aponta para além dessa família.

A cena em questão ainda introduz a diferença que pode ser observada entre a comunicação que precisa caber numa mensagem de áudio, por culpa da distância, e o diálogo que, graças à presença física, nem sempre precisa ser verbalizado. 

Por meio de planos fixos e contemplativos que registram as ações cotidianas das tarefas domésticas, Layla sublinha uma mudança de tempo e de universo onde o nada e o tudo acontece – nessa calmaria, silêncio não é sinônimo de ausência, ao passo em que o sossego pode cada vez mais se aproximar à construção de uma ideia de paz. Trata-se de uma espécie de bucolismo outro que é reforçado pelas imagens das roupas que secam no varal, das plantas que estão penduradas próximas à parede, das paredes cheias de fotos e de postais que recontam histórias, ocupações e lembranças. Uma possibilidade de suspensão do céu construída e reforçada pela experiência audiovisual.

O silêncio, por sua vez, nunca é total. Afinal, desde o início do filme, diversas cenas foram permeadas por uma música de fundo. Por isso o descompasso nem chega a ser tão grande quando “Pump Up The Jam” explode em tela, produzindo, do ato de espremer laranja colhida no pé de casa, um breve clipe musical. A música, tanto essa quanto as demais que tocam em segundo plano em diversos momentos do filme, contribui de forma crucial para a construção dessas singularidades em meio ao que é banal, comum e familiar. Por si mesma, ela cria campos semânticos que interligam aquele cotidiano periférico e aquelas pessoas à moda do sertanejo raiz, ao Technotronic e ao Michael Jackson, como que ressaltando, novamente, misturas que só poderiam ser reconhecidas ali. 

“Ah, cê tá me filmando, é”, diz a mulher que se exercita no espaço da própria casa. Casa essa enquadrada como sinônimo de refúgio e acolhimento. E o homem que continua colhendo gordas laranjas do pé.

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