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Deixar-se guiar – Ari e Eu (2019)

Existe algo no cinema documentário que costuma sempre atrair meu olhar. Aquela disposição de colocar a câmera e a si mesmo sob o tal “risco do real”. Talvez, valha dizer aqui que não me refiro à ideia idealizada do documentário como uma janela capaz de acessar a “vida como ela é”. Não, não é isso. Refiro-me a uma natureza que certas realizações conseguem administrar de, ainda que se esteja trabalhando a partir de um roteiro, durante a execução mantenha-se sempre atento e aberto ao que pode escapar a ele. Talvez seja uma obviedade, ou mesmo um pressuposto, mas na prática são muitos os filmes que se perdem ao tentar impor algo que não parece caber.

Ari e eu, curta-metragem de Adriana de Faria, traz para o primeiro plano esse processo de lidar com o que se aspirava e aquilo com o que de fato se deparou. A narração da diretora logo explica que o filme se origina a partir dos seus estudos em uma faculdade de cinema em Cuba e, como parte do processo de conclusão do curso, era necessário realizar um filme. Surge a ela então a ideia de abordar seu desconhecimento sobre o espanhol, a partir de um processo de troca de conhecimento com Ari, uma niña de 9 anos que vive em Pueblo Textil, povoado do país.

No entanto, dividir esse exercício com uma criança é se escancarar ao inesperado. Mais do que nomear as coisas para as quais a diretora aponta, Ari passa a guiar as direções do documentário, a partir do seu ponto de vista singular. Sempre na posse do gravador de som, ela por vezes aparece em cena sem encarar a câmera, como se dissesse para aquela ferramenta (e quem está atrás dela) que se há interesse no que ela tem a dizer, que se arranje uma forma de acompanhá-la. E é a partir desse movimento de se deixar guiar por Ari, que nos é revelado um pouco mais sobre ela.

Em um segundo momento do filme, ao ser proposto um exercício de imaginação para Ari a partir do significado de palavras do português, invertendo a proposta inicial, mais uma vez o filme parece revelar fragmentos da vida da garota. “Apaixonar” vira “soledad” (“solidão”), “dor” vira “te amo”, “saudade” se torna “amiga”… E a escolha que compõe o jogo de palavras e significados parece desvelar, em algum nível, um pouco sobre a diretora, sobre Ari e, se tratando de um jogo de suposições, também um pouco sobre como Ari enxerga Adriana.

A direção parece ciente disso, e tenta acentuar essa sensação através da trilha sonora, que ressoa as delicadas notas de um piano. Mas, mais do que o efeito da música, é a troca entre essa menina e essa mulher que parece mover o filme a um novo lugar. Se na primeira parte do curta Ari apresenta sua visão de mundo a partir de aspectos da sua vida cotidiana, nessa metade final, em que se estabelecem os diálogos  entre diretora e criança durante o exercício de significados, elas passam a partilhar seus respectivos sentimentos de saudade, contraditoriamente tão diferentes e ainda assim tão semelhantes.

Existe uma crença de que o cinema documentário acontece no encontro com um outro. E ainda que Adriana de Faria não esteja presente fisicamente no filme, Ari y yo é o registro de um desses encontros, colocando em diálogo uma mulher e uma niña, levando-as a descobrirem juntas que, apesar das distintas nacionalidades, da diferença de idade e da dificuldade do idioma, elas ainda possuem algo a compartilhar.

Diego Silva Souza Ver tudo

Diego Silva Souza é nascido e criado em Timóteo, no interior de Minas Gerais, e atua escrevendo sobre audiovisual em artigos e textos críticos. Graduando de Jornalismo na UFMG, fez parte do Júri Jovem da 23ª Mostra de Tiradentes, integrou a comissão julgadora da 2ª Mostra de Curtas Cinecubo e a curadoria do 9° Cinecipó – Festival do Filme Insurgente. Possui colaborações com a Zagaia em Revista, Cinética e Cine Festivais, além de comentar filmes na Mostra Cinema Permanente do Cine Humberto Mauro.

Um comentário em “Deixar-se guiar – Ari e Eu (2019) Deixe um comentário

  1. Diego,
    O seu texto que apresenta Ari y yo é de uma delicadeza que me fizeram pensar o quanto a escrita é parte de um mesmo e outro documentário, (re) invenção narrativa tão potente quanto o que se apresentou na tela.

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