Apesar do medo, transbordar – A Felicidade Delas (2019)
6ª Mostra de Cinema Feminista
A câmera paira sobre a multidão de mulheres gritando palavras de ordem, sobre cartazes exigindo o direito de liberdade de escolha e sobre bandeiras que estampam figuras históricas como Tereza de Benguela. Os cortes são rápidos, tentando dar conta de tudo que está em volta. Pouco a pouco, contudo, a estabilidade é encontrada, a partir do plano e contraplano de duas mulheres negras que se fitam repetidamente com um sorriso no rosto. Mas não demora até que o momento finde com as luzes vermelhas da polícia, mudando a expressão de euforia presente na troca de olhares entre as duas mulheres, pela tensão que encontra seu ápice nos barulhos de bombas estourando. A Felicidade Delas, dirigido por Carol Rodrigues, coloca o centro de sua narrativa nessa dualidade entre o desejo e a repressão.


É somente quando a manifestação dispersa que as duas mulheres se aproximam. Elas se reencontram, ainda em fuga, com uma delas sendo abordada pela polícia. E mesmo sem proferir uma única palavra, conseguem se entender. São nos olhares – os mesmos que se encontraram no início do filme – e nos gestos que se comunicam. É dessa forma que juntas ensaiam e colocam em prática a fuga.
Elas encontram por ali um espaço abandonado que usam como refúgio. Dividem naquele lugar um alívio momentâneo, um respiro, antes de se colocarem em movimento novamente para explorar as paredes grafitadas. Iluminadas por luzes azuis e roxas que realçam o brilho de suas peles, compartilham uma admiração tanto uma pela outra como pela pintura. Paixão e arte então se fundem, quando uma delas tira uma lata de tinta da bolsa e usa daquelas paredes para ilustrar seu desejo.


Novamente, são interrompidas pelas luzes de uma viatura que as assusta e as levam a se esconderem. Coladas uma a outra, se encarando, respiram ofegantes. Ao fundo, como em um filme de suspense, ouvimos ruídos da rua, que podem tanto ser um indicativo da polícia que as persegue quanto não ser nada. Neste momento de medo e apreensão, o gesto e os olhares se tornam toque, o desejo por fim se materializa. Os ruídos vindos de fora se tornam cada vez mais altos e incômodos, enquanto as sirenes voltam a ser ouvidas com clareza. Mas já não importa mais. Entregues uma à outra, elas transbordam para além do que qualquer medo pode reprimir. E inundam a cidade.
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Diego Silva Souza Ver tudo
Diego Silva Souza é nascido e criado em Timóteo, no interior de Minas Gerais, e atua escrevendo sobre audiovisual em artigos e textos críticos. Graduando de Jornalismo na UFMG, fez parte do Júri Jovem da 23ª Mostra de Tiradentes, integrou a comissão julgadora da 2ª Mostra de Curtas Cinecubo e a curadoria do 9° Cinecipó – Festival do Filme Insurgente. Possui colaborações com a Zagaia em Revista, Cinética e Cine Festivais, além de comentar filmes na Mostra Cinema Permanente do Cine Humberto Mauro.