Em quantos frames cabe a imensidão?- Noite que não finda (2021)
Mostra Instante Suspenso
O breve filme de Pedro Aspahan consegue abarcar uma enormidade de sentidos e sentimentos. Visualmente falando, o curta de apenas 6min é algo simples: janelas de prédios – cena que se tornou, de certa forma, um símbolo da quarentena nas metrópoles – no céu noturno têm, aos poucos, suas luzes apagadas. As imagens são acompanhadas pelo som de uma clarineta, em um ritmo imprevisível, que nos guia até o fim da projeção, quando a tela é ocupada apenas pela escuridão durante um minuto.
A estrutura do filme, como explicada pelo diretor, remete à terrível maneira exponencial como o vírus da Covid-19 se alastra: “o primeiro intervalo em preto tem apenas 6 frames de duração, o segundo tem 12 frames, o terceiro, 24 frames (um segundo), até chegarmos ao ápice, no último intervalo, com 1 minuto de tela em preto: um minuto de silêncio das imagens em homenagem às vítimas”. Assim como as imagens, a música segue um padrão de progressão numérica “até o último harmônico possível na tessitura da clarineta, caminhando sempre na direção dos agudos”.
Como um retorno à antiguidade, Pedro usa da poética – palavra que não uso levianamente – dos sons, das imagens e dos números, falando uma linguagem tão antiga quanto a própria vida: a língua das geometrias sagradas que nos remete aos mistérios da criação. Em um momento onde a racionalidade não só nos falha em explicar o que vivemos como nos leva à loucura de tentar entender o absurdo generalizado e banalizado, Pedro parece adentrar por caminhos mais sutis, da imaterialidade, da escuridão, do cosmos. Durante seu processo, o diretor entra na vibração das notas musicais e do próprio “sopro da vida” que encontra-se, durante a pandemia da Covid, agonizante, sem ar.
O filme, através da progressão geométrica dos quadros e notas, parece emular os princípios do universo e do ritmo de criação e expansão da vida, que dizem os cientistas caminhar para a entalpia final do universo, que se expande até se desfazer. O que o filme se torna – essa sequência de luzes e sons – é algo que me soa como uma metafísica do antropoceno, um último suspiro da humanidade: um agonizante esguicho. Noite nos lembra da mais fina capacidade da poética de traduzir imagens e sons em sentimentos tão profundos e difíceis de se verbalizar, quanto a própria angústia existencial, sem abusar da “experimentalidade” para justificar qualquer possível falta de sentido.
Num mundo em que a clarineta-sirene grita e recebe de volta o silêncio, Noite que não finda é uma catarse-homenagem que busca materializar, sem amparos, as dores de um genocídio.
Categorias
Iakima Delamare Ver tudo
Iakima Delamare é graduanda de jornalismo na UFMG, atua majoritariamente na pesquisa, crítica e produção cinematográfica. Como pesquisadora, tem em foco os cinemas indígenas e de quilombo. Como crítica, compôs o Júri Jovem da 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes e a curadoria do 9º Cine Cipó, festival em que atua também como assistente de produção. Por fim, como realizadora, participou de produções audiovisuais como Nove Águas, curta dirigido por Gabriel Martins com a comunidade do Quilombo Marques, e Ela Viu Aranhas, de Larissa Muniz.