A casa mais vigiada do Brasil – O Dia da Posse (2021)

Em determinada cena de O Dia da Posse (2021), filme de Allan Ribeiro, Brendo Washington, personagem a todo momento observado pelo diretor, simula gravar a sua inscrição para o Big Brother Brasil. Mesmo sem curtir o programa, Allan o instiga. Brendo já tem todo o plano na cabeça. Primeiro pretende finalizar a faculdade de Direito, que atualmente cursa, e a de Medicina, que cursará, para depois entrar no reality show. “Quero ter uma estabilidade, pra depois entrar como diversão”, ele diz, antes de começar a narrar o futuro. A câmera do filme, inquieta durante várias cenas, ávida por passear pelos registros que lhe chamam a atenção naquele cotidiano arrastado da quarentena brasileira, se fixa nesse momento – e em outros de conversa direta com Brendo. E o personagem, homem de aparente personalidade expansiva, parece se retrair – não só frente à rigidez do quadro naquela hora, mas frente ao peso de um estilo documental observacional que, ao invés de retratá-lo em inteireza, o limita.
Ambos, Allan e Brendo, dividem um mesmo apartamento durante o ano da pandemia. Ainda que o filme esteja imbuído de uma certa coletividade compartilhada, a exemplo dos registros que Allan faz da sua janela para dentro da janela de seus vizinhos, esse talvez seja um longa sobre Brendo (ou sobre essa relação compartilhada entre os dois) e, quiçá, sobre os “anseios da juventude brasileira”, como o observado brinca. Pois Brendo não é uma pessoa extraordinária, fora do comum. Pelo contrário: negro, homossexual, baiano e migrante, sua trajetória acaba dialogando bem com as diversas outras histórias desse Brasil que, nas últimas décadas, assistiu a uma breve, ainda que significativa, conquista de pessoas mais pobres por direitos até então negados.
O que talvez apareça enquanto extraordinário no filme é a propensão de seu protagonista a futurar – possivelmente, uma das poucas coisas que nos restaram em tempos de suspensão absoluta dos planos, ideias e projetos. Nessa paralisia, a narrativa de O Dia da Posse constrói uma coexistência de tempos de forma singela, intercalando o presente daquela relação mediada pela câmera, as lembranças sinceras que conformaram um personagem imbuído de justiça social, e as projeções de futuro daquele que não apenas quer ser, como tem certeza de que será o futuro presidente do Brasil.
Contudo, nem a intimidade compartilhada entre essas duas pessoas – observador e observado, que também constroem, juntos, o roteiro do longa – livra o filme de uma possível demagogia. Em certo momento, num dos interessantes confrontos entre Brendo e Allan, o personagem solta a seguinte frase: “se fosse pra fazer um filme normal, você não faria um filme comigo”. Entretanto, é exatamente isso que Allan constrói: um filme normal, simples, bonito em alguns momentos, instigante noutros, mas que padroniza e retira as camadas de um personagem complexo. As cenas de desconforto são poucas, as de conflito são jogadas para escanteio rapidamente, e o que poderia acabar sendo um retrato se revela um pincelado borrado e incompleto. Parece que o desinteresse de Allan pelo BBB acabou se impondo como uma barreira forte demais para a efetivação de um registro multifacetado.
* Texto originalmente escrito como exercício durante o Talent Press Rio 2021.
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